E o que é a vida, a não ser uma sequência de instantes que não voltam mais. Não se repetem e por serem tão únicos podem deixar marcas infinitas em nosso corpo e nossa alma.
Dia desses estava pensando o quanto algumas coisas são cruéis. Quando criança temos a pureza do pensamento, somos curiosos, queremos descobrir, criar. Olhamos a vida como um mistério a ser desvendado, um simples barulho estranho que alguém faz, se torna algo definitivamente engraçado, que queremos mais e mais, que se repita para que possamos rir eternamente. Tudo é tão leve, colorido, a dor passa com um beijo da mãe, o colo do pai dá a segurança de que nenhum mal irá acontecer. Nosso bichinho é o melhor amigo e é tão lindo, tão eterno.
Mas aí vem os adultos para ensinar o que é “ser gente”. Gente não faz isso, não pode aquilo. Tire as mãos daí, não toque nisso, não pode falar assim, feche as pernas, homem não chora, menina se dá o respeito. Toda leveza se vai e a eternidade também. Passamos a ter medo… medo de ser quem somos, medo de descobrir o mundo, medo de errar, medo de ser diferente, medo de amar, medo de perder o amor, medo da morte. A vida que antes era tão bela passa a ser algo tão amedrontador, caótico e doentio.
Quando percebemos lá se foi todo o poder de ser e fazer. Ali paralisados, sem saber para onde ir, como fazer, o que fazer… que difícil! Acessamos uma parte do nosso ser, diferente, obscura, revoltada, rebelde, amedrontada. Parece que a criança tenta lutar para sair do cativeiro que foi colocada, mas as grades são muito fortes. Ela se agacha num canto, se encolhe e chora. Se esconde. Vê que é uma luta desigual, se dá por vencida e dá lugar para o adulto mascarado que vai viver a vida.
Uma vida sem graça, conflituosa, cheia de regras. E mais uma vez aparecem outros adultos, tão mascarados e amedrontados quanto, para apontar a direção da vida e mostrar como é “ser gente”. De repente, tudo aquilo que podaram na nossa infância, começa a se tornar importante. Você tem que ser criativo, tem que descobrir coisas novas, tem que encontrar seu lugar no mundo… E aí surge um questionamento: – Mas não era isso que eu estava fazendo? – Não era isso que me proibiram de fazer? – Gente esquisita essa, que diz e depois “desdiz” o que havia dito.
De novo vem o impulso, a criança ganha força, quer sair da prisão, começa a mostrar do que gosta, o que quer… mas, lá vem o adulto novamente e diz. Ei, espera! Não é assim… e mais uma vez vão ensinar a “ser gente”. Você tem que ser criativo, mas sua criatividade deve ser assim e assado, se estiver fora disso não é criatividade, é loucura, é fantasia, você está fora da casinha. Você tem que ser curioso, mas só pode chegar até aqui… Você precisa achar seu lugar no mundo, mas não se esqueça de casar, ter filhos, passar no concurso, porque isso é “ser gente”. Você precisa ser bonito, rico, magro, bem sucedido, blábláblá…
E aí aquela criança começa a perceber que na verdade “ser gente” é ser alguém que se deixa ser manipulado e entra na fila para ser igual a todo mundo. Porque ser gente é ser igual, é como se todo mundo tivesse sido formatado em série para viver a vida como se fosse um robô, feitos em escala.
E ela entende que “ser gente” é bem mais sem graça do que se pode imaginar. O bom mesmo é ser criança. Aquela que não tem medo, não tem preconceitos, que sabe rir até doer a barriga, que olha uma linda flor com a mesma curiosidade com que se olha um avião. Ser criança é querer tocar, querer sentir, é saber brincar com a vida sem medo do que se vai descobrir. É estar sempre aberto para o novo e ao mesmo tempo fazer inúmeras coisas de novo, de novo e de novo. Porque são boas, porque fazem bem. Ser criança é correr na terra, é dar um abraço gostoso, tomar banho de chuva, lamber a cobertura do bolo. É chorar muito porque ralou o joelho, mas saber que com um beijinho a dor passa, e vai passar, porque tudo passa. E o importante mesmo é ser feliz. A criança pura de coração que ainda não foi contaminada pelo adulto mascarado/amedrontado, não se importa se o amiguinho é feio, rico, pobre, bonito. Ela percebe as diferenças, pergunta com naturalidade e as aceita simplesmente.
Às vezes, olhando assim, parece até que a ordem está invertida, e na verdade os adultos deveriam tirar todas as suas máscaras, os “pode e não pode” e aprender com as crianças o que é na verdade “ser gente”, mas gente de verdade, de corpo e alma. Ser gente, ser diferente, saber compartilhar, conviver e respeitar.